O coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor João Feres Júnior, disse que a desigualdade racial é brutal no jornalismo brasileiro, embora haja também desigualdade de gênero. A afirmação foi feita ao comentar a pesquisa Raça, Gênero e Imprensa: Quem Escreve nos Principais Jornais do Brasil?, feita pelo grupo e divulgada neste mês.
A pesquisa mapeou o perfil dos profissionais que escrevem nos três maiores jornais impressos do país, Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, e teve colaboração da Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação, associação que se dedica a combater a escassez de oportunidades para profissionais negros neste mercado. Conforme a pesquisa, os jornais analisados mantiveram a maioria branca identificada em estudo feito em 2021, atingindo 84,4%, o que indica a existência de forte desigualdade racial.
O segundo grupo mais numeroso no jornalismo brasileiro são os pardos (6,1%), seguidos dos pretos (3,4%), amarelos (1,8%) e indígenas (0,1%).
João Feres Junior observou que, quando se trata de textos de opinião, considerados o “filé do menu” jornalístico, a sobrerrepresentação de jornalistas brancos sobe para 90%. “Em editoriais, alcança 100%, caso do Estadão”, ressaltou o professor. Em O Globo, são 93% e, na Folha, 86% de brancos. “Não tem só uma subrrepresentação brutal de negros escrevendo nos jornais mas, também, em termos de espaço de maior poder nos jornais”, observou.
“As mulheres brancas até ganham dos homens como colunistas, com maior tempo escrevendo, enquanto os homens brancos ocupam quase exclusivamente as categorias com mais frequência de aparição na grande mídia, e os negros ficam na categoria de aparecer uma vez ou duas, menos frequentes”. Ou seja, não há muito colunista negro na grande mídia, acrescentou.
Considerando o perfil de raça e gênero, observa-se nos três jornais que a maioria dos textos é assinada por homens brancos, seguidos de mulheres brancas, enquanto uma pequena parcela envolve homens negros e mulheres negras, nessa ordem. Para os pesquisadores, isso denota um problema da invisibilização de grupos sociais na produção das narrativas e informações que levam à formação de opinião. Segundo a sondagem, mulheres brancas lideram entre os colaboradores mais frequentes (acima de 16, de 11 a 15 e de 6 a 10 textos no período pesquisado relativo a 2021), enquanto homens e mulheres pretos encontram-se na faixa de mais baixa frequência (de 1 a 5 textos no período).
O estudo indica que a desigualdade da distribuição geral se reproduz de modo similar pelas temáticas abordadas. A exceção são notícias relacionadas a esportes, cujos textos têm seis vezes mais autores homens que mulheres.
Gênero e idade
Há também desigualdade de gênero nos jornais pesquisados. As mulheres representam um terço do total de profissionais de imprensa nos três veículos, com fatia de 36,6%, enquanto os homens detêm 59,6%. Outro dado interessante mostra que as mulheres se concentram nas faixas de idade mais baixas, enquanto os homens estão, em maioria, nas faixas etárias a partir de 50 anos. A pesquisa aponta duas hipóteses para explicar esse dado: “o desequilíbrio observado pode ter a ver com a mudança cultural em prol de maior igualdade de gênero, que afetaria mais as categorias de entrada, ou seja as mais jovens, e os jornais têm mecanismos internos que promovem a exclusão de mulheres ao longo da carreira”. João Feres Júnior afirmou que não dá para saber qual é a causa verdadeira dessa diferença, mas admitiu que pode ser uma combinação das duas hipóteses.
O Estado de S. Paulo tem a maior proporção de pessoas acima de 60 anos (20%), seguido pela Folha (15%) e O Globo (10%). Em todos, esse grupo é composto majoritariamente por homens, revela a pesquisa.
Solução
João Feres Júnior afirmou que a solução para a desigualdade racial e de gênero nos veículos da grande mídia é os jornais contratarem mais pessoas negras e estabelecerem um equilíbrio de gênero maior. “Não tem outra coisa. É política de ação afirmativa para aumentar a participação de homens e mulheres negros”. Para o professor, a questão mais gritante que precisa ser resolvida é a representação dos negros e também dos pardos no jornalismo brasileiro.
Ele aponta uma intensidade da subrrepresentação dos jornalistas negros, “que se pode chamar de discriminação, ou intensidade da dominância branca nesses espaços; o fato é que a hegemonia branca aumenta na medida em que você caminha para os espaços de maior poder e prestígio no jornal, que são os colunistas e, depois, os editoriais”.
Feres disse que é preciso resolver também a questão da subrrepresentação de gênero, pois as mulheres também são subrrepresentadas, embora não tanto quanto os negros. As mulheres estão mais representadas nas categorias mais jovens do que nas velhas. Segundo o professor, estes são os achados mais importantes da pesquisa. Ele propõe a criação de uma política de inclusão que atinja metas, ou estabeleça cotas. “Por exemplo, fixar que, em cinco anos, tenhamos 20% ou 30% de negros”. Para Feres Júnior, não adianta ficar só no discurso: é preciso realizar.
A pesquisa reforça o papel do jornalismo na reprodução simbólica da sociedade brasileira e na informação política dos cidadãos, “tão fundamental para o funcionamento do regime democrático”. Para ele, subrrepresentação de pretos e pardos nos grandes jornais evidencia a existência de um grave problema de ordem cultural, social e política que parece não ter sido combatido por medidas de inclusão e diversidade nas redações.
Retrato
Na avaliação da coordenadora de Igualdade Racial da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Valdice Gomes, a pesquisa mostra de maneira clara que negros e mulheres são minoria nas redações da grande mídia, e o estudo do Gemaa/Uerj confirma o retrato que vem sendo feito sobre o perfil racial da imprensa brasileira. “Isso só mostra o quanto os jornalistas negros vêm denunciando e reivindicando políticas e ações afirmativas também no segmento de comunicação. O perfil traçado só vem provar o quanto o jornalismo feito por esses veículos é prejudicial para a própria população. Não é representativo da sociedade brasileira, quando se sabe que a maioria da população, 56%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são pessoas negras.”
Valdice chamou a atenção também para o fato de a maioria da população brasileira ser formada por mulheres. “E um jornalismo feito com esse perfil retratado na pesquisa mostra que a realidade da sociedade brasileira não está sendo mostrada de forma mais verdadeira. Isso prejudica o jornalismo que está sendo feito”. De acordo com a jornalista, as pautas raciais e de gênero, quando são abordadas, não vêm com a qualidade necessária. “É um jornalismo prejudicial, não só pelo perfil dos profissionais que fazem, mas também pelas fontes que são ouvidas e apresentadas. Nem a população está representada nas fontes e, muito menos, pelos profissionais. E isso, logicamente, é prejudicial para a sociedade e não contribui para a redução do racismo, nem do machismo.”
Segundo Valdice, é por essa razão que a Fenaj luta tanto para que ações afirmativas, políticas de equidade racial e de gênero ocorram também nos veículos de comunicação. Há alguns anos, jornalistas negros denunciavam a situação, mas não havia pesquisas. “Eram situações que a gente sentia na pele, porque vivia a realidade. Hoje, existem pesquisas. Então, não tem desculpa para que os veículos de comunicação deixem de promover tais políticas. Hoje, eles têm esses números, têm esses dados.”
Para Valdice, o que é preciso é que os empresários do setor entendam e demonstrem vontade e interesse de contribuir com uma sociedade melhor. O jornalismo é um bem social e, se é um bem social, tem que estar a serviço da maioria da sociedade brasileira. “Enquanto ele [jornalismo] tiver esse perfil, não estará contribuindo para a melhoria da sociedade, para uma sociedade mais democrática, mais justa e menos racista.”
Passo à frente
A professora Dione Moura, diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), não demonstrou surpresa ante a pesquisa da Gemaa. “Os dados não surpreendem, embora contrariem o que deveria ser. Não causam surpresa, nem espanto, porque espelham desigualdade de gênero e raça da sociedade brasileira, mas contrariam o nosso desejo. Não só meu, enquanto pesquisadora, jornalista e mulher negra, mas de uma grande coletividade, nosso desejo de que as instituições deem um passo à frente, no sentido da igualdade de gênero e da redução da desigualdade racial.”.
De acordo com Dione, o fato de a sociedade brasileira ser desigual não permite que empresas de qualquer setor digam que, já que a sociedade é desigual em termos de raça e gênero, nós também seremos. “Não. A função das instituições é dizer que a sociedade brasileira tem desigualdade de gênero e raça e nós, enquanto instituições de mídia, iremos no sentido contrário e vamos promover políticas de igualdade de gênero e racial. Por isso, esse dado contraria, porque vai no sentido de algo que a gente já poderia ter feito.”
Dione afirmou, no entanto, que não se pode esperar um movimento natural. “Temos que ter ações afirmativas para os processos seletivos de jornalistas mulheres e mulheres negras e também indígenas e quilombolas. Precisamos desse movimento de inclusão, que não será natural, assim como não foi natural o processo de escravização do povo negro, nossos antepassados, no continente africano”. Segundo ela, só uma ação social pode corrigir os resultados da que foi a escravização no Brasil e em toda a América Latina. “Não sairemos disso sem uma ação incisiva.”
Respeito
Na opinião da professora, os três jornais que analisados na pesquisa merecem, por seu papel histórico, todo o respeito da comunidade de leitores, mas podem gerar mais respeito ainda na medida em que passarem a incluir em seus processos seletivos, desde a fase de estágio, uma política de igualdade racial e de gênero. “Isso também é obrigação da instituição, contemplando jornalistas negros, de povos indígenas e de comunidades quilombolas”. Dione deixou claro que não é a jornalista negra que vai ter emprego que ganha. O leitor, o espectador, o internauta do veículo de imprensa vão ganhar uma visão diferente de mundo.
Órfã de pai aos 5 anos, criança negra, Dione Moura dependia do trabalho da mãe costureira para estudar. Graças a uma pessoa benemérita da família, que pagou sem aparecer, ela conseguiu bolsa de estudos aos 15 anos para o curso científico e pôde se formar. Tudo o que sofreu fez com que ela se tornasse uma mulher que pensa na inclusão e que busca bolsas de estudo para os seus estudantes. “Porque, aos 15 anos, tive que fazer isso”.
De acordo com Dione, uma instituição de imprensa que perde uma pessoa com essa experiência está privando seu leitor, seu internauta, dessa visão de mundo. “Essa inclusão não é só para quem é incluído. A jornalista negra que não está na mídia não pode contribuir com o que sabe, com sua experiência, com asua visão de mundo mais diversificada e historicizada. É o leitor, quem acompanha a empresa pelo Instagram, todos perdem. Essa é a questão”.
Segundo a professora, o mesmo ocorre com a jornalista indígena. Dione propõe que as empresas de comunicação invistam mais em postos de trabalho para mulheres, porque as jornalistas brancas que estão nessas instituições também não se encontram no melhor dos mundos. “Há muita precarização, terceirização”. Ela disse esperar que as empresas jornalísticas decidam empregar mais mulheres, jornalistas negras e indígenas porque o leitor vai atrás onde elas estão. “É preciso perceber que a perda não é só do excluído, mas de quem exclui também”, afirmou.
Edição: Nádia Franco
Fonte: agenciabrasil
Autor: Alana Gandra – Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro